29 mar 2022

“Como trabalhar Scratch com uma criança que não tem nem casa para morar? Eu trabalhei”


 

Moro em Belém do Pará, trabalho na EMEF Manoel José Sanches de Brito, em Ananindeua, há 7 anos. Sempre atuei com atividades focadas em tecnologia, na sala de informática. Desde 2012 oriento projetos que nascem de perguntas e inquietações das crianças, temas do dia a dia deles tanto na escola, como na comunidade. Eu já aplicava aprendizagem criativa, mas não sabia, descobri em 2018 quando conheci a Rede Brasileira de Aprendizagem Criativa (RBAC). 

Meus projetos sempre começam com ideias e hipóteses trazidas pelos alunos, são coisas que eles veem na rua na TV, na internet, têm dúvidas e trazem para sala de aula e começamos a investigar. Antes de começar, a gente conversa muito e depois parte para a mão na massa. 

Vou dar um exemplo: eles sentiram a necessidade de falar sobre o entorno da escola, porque havia muito lixo espalhado. Pensaram em fazer um jogo sobre separação do lixo. Primeiro pesquisaram, depois partiram para um jogo de papelão, um labirinto que imitava o quarteirão da escola. Teve erro, porque sempre tem. Eu só observava. Depois levamos para o Scratch. Tiraram o projeto do real, para o virtual. 

O Scratch é uma linguagem de programação muito fácil de aprender, tanto crianças quanto adultos conseguem. Queria trabalhar programação com criança, mas por meio de códigos eles não iam aprender. Conheci o Scratch em 2018 por conta de uma formação da Secretaria da Educação de Ananindeua e trouxe para a escola. 

Para esse game da reciclagem, eles pegaram a imagem do quarteirão da escola e colocaram de pano de fundo do Scratch. Desenharam o cesto de lixo, o labirinto por onde o lixo passava até cair na lixeira. Que lixo é esse, orgânico, papel, vidro? Qual a cor de cada lixeira? O orgânico pode ser reaproveitado? Para onde vai o papel depois de pôr na lixeira? Tudo isso eles aprenderam, iam fazendo e perguntando. Eles foram aprendendo a pesquisar antes, durante e depois do projeto. 

O que surgiu de resultado? Em casa, eles começaram a separar o lixo. Os pais e mães diziam que tinham de separar tudo, porque as crianças levaram essa conscientização. Um projeto desse pode não sanar o problema do lixo de uma hora pra outra, mas foi uma sementinha dentro de cada família. Agora eles sabem que não podem juntar todo o lixo dentro de um saco, que boa parte pode ser reaproveitada. 

O projeto sempre começa com a parte desplugada, com caderno, livro, materiais recicláveis e depois vai para o plugado, no computador. Os trabalhos envolvem toda a escola, os 360 alunos do ensino fundamental 1, cada um faz uma coisinha e participa de alguma forma. Inclusive os da educação especial. Na pandemia, trabalhei muito com o desplugado, porque nem todos tinham acesso ao celular, ao notebook. 

Teve um garoto de 8 anos que perdeu o vínculo com a escola e fizemos busca ativa. Os pais perderam o emprego, e tiveram de morar na rua. O vigia da escola o viu na feira com a mãe. Fomos atrás, demos o material impresso para ele. A igreja cedeu um quarto e passaram a viver de doação. A gente passava as atividades, meu lema não é deixar ninguém de fora. E eu quis trabalhar com ele, levei lápis, tesoura, ele cortava, interagia. Assim foi.

Como eu posso trabalhar com uma criança que não tem nem casa para morar? Eu trabalhei. Eu incentivava fazer programação no papel, com o Scratch desplugado e o plugado para quem conseguia baixar o aplicativo. Assim fizemos criação de histórias, de joguinhos. Até hoje eu trabalho assim. 

Eu gosto muito do fazer, quando eu começo minhas aulas sempre falo: ‘bora trabalhar’. A aprendizagem criativa veio dar suporte de fundamentação. Quando eu começo um projeto, penso na criação, antes eu não pensava. Agora ela está presente de uma maneira muito forte. 

Sempre fui assim, quando eu estudava e via só as crianças sentadas, lendo, escrevendo no quadro, sempre me inquietou e pensava: ‘se um dia eu for professora, não vou trabalhar assim.’ Nas minhas aulas, coloco música, a sala tradicional já foi e não cabe mais agora. Na minha prática não cabe. É claro que precisa direcionar o criar, mostrar para que vai servir, se vai ser útil para alguém, esse é o lema da criação. 

Não vamos resolver o problema do mundo, mas o papel do professor é fazer com que a criança se sinta amada, tenha mais oportunidade, inclusive a de sonhar. Esse é o trabalho que fazemos aqui na escola. Por isso todos querem estudar aqui, a procura é grande, porque a escola acolhe, tem compromisso com as crianças, elas aprendem de forma prazerosa. Isso nos move a querer fazer melhor todos os dias.  

*Este texto integra a série “Histórias da RBAC”, que conta com depoimentos dos membros da Rede Brasileira de Aprendizagem Criativa relatando suas atividades, projetos, sonhos e inspirações.

Conhece uma história inspiradora? Envie para [email protected] e compartilhe com a comunidade da RBAC.

 

 

Categoria
Artigo
Entrevista

6 Comentários

Obrigada! Rede, obrigada Vanessa Fajardo pela oportunidade de contar um pouco do trabalho que é realizado na escola pública , cada vez mais a Rede me inspira pra seguir o caminho da Educação de Qualidade e Transformadora.